Histórias de astronomia
e astrónomos amadores
(parte 1)

Coordenação de Guilherme de Almeida



Os astrónomos amadores passam por situações invulgares, ocorrências inacreditáveis, imprevisíveis ou insólitas. E também por alguns sustos. Há ainda casos humorísticos, onde a graça está sempre nas situações e não nas pessoas envolvidas.
Estas pequenas histórias ocorrem nas Astrofestas, nas observações astronómicas (pessoais e públicas), durante a construção de telescópios e em muitas outras circunstâncias. Contadas por quem as viveu, são interessantes para partilhar e constituem uma componente importante do que é viver e sentir a Astronomia.
Nestas situações vê-se um pouco de tudo. E há casos que desafiam a imaginação mais exaltada ou a ficção mais imaginativa. Nesta nova secção da Revista Astronomia da Amadores pretendo dar voz a estas histórias, que são sempre verdadeiras, contadas pelos próprios. O autor (ou autora) de cada história vai referido(a) logo após a mesma. Algumas histórias foram ligeiramente retocadas, corrigindo gralhas, adaptando textos, ou resumindo relatos demasiado longos, sem desvirtuar os originais. Agradeço desde já, aos respectivos autores, o envio destas histórias tão interessantes. De vez em quando incluirei também as minhas próprias histórias. Continuaremos no próximo número da Revista.

1. O telescópio-coluna
A maior parte das minhas "histórias" aconteceu na área da construção dos meus equipamentos para a Astronomia. A que recordo como "primeira", remonta à década de 70, quando da construção do meu primeiro e "famoso" telescópio: uma luneta cuja objectiva era uma lente simples, de oculista, com uma dioptria (1 metro de distância focal). Uma lupa, também de oculista, fazia de ocular.
Para a construção deste telescópio, era necessário arranjar um tubo, coisa que eu consegui como oferta, retirado de um cenário desmontado do Teatro Villaret (onde eu trabalhava na altura, no "Zip, Zip" de saudosa memória). Pedi para me cortarem o tubo com cerca de um metro e meio (mais que suficiente) e aí vou eu com o tubo na mão, nos transportes públicos, sem qualquer problema. Porque já residia na margem sul, fui "apanhar" o barco no Cais do Sodré, um daqueles "ferry´s " já velhinhos que ainda se arrastavam pelo Tejo nessa década.
Passava já um pouco das dez da noite, e porque eu adoro o ar fresco, decidi ir sentar-me na parte de trás do barco, onde havia uma zona de bancos bem arejada, coberta com um toldo sustentado por umas colunas brancas de diâmetro (e cor) semelhantes ao tubo que eu transportava para o "canudo", que era em PVC creme (60 mm de diâmetro). Absolutamente por acaso, fiquei sentado logo no primeiro lugar, ao cimo de um pequeno lance de escadas, segurando o tubo na vertical (para não incomodar ninguém), com uma ponta apoiada no piso, junto aos pés. As pessoas vinham saturadas do trabalho (ou da escola) e alguns ainda nem tinham jantado. A iluminação do barco não era nada famosa, e o meu tubo parecia mesmo uma "coluna" de suporte do toldo (e apoio dos passageiros). O resultado não se fez esperar: em cada 4 ou 5 passageiros que subiam o pequeno lance de escadas, pelo menos um, ao chegar ao cimo, agarrava-se ao meu tubo. Quando aconteceu a primeira vez, tentei pedir desculpas pela "armadilha" não intencional. Não cheguei a dizer nada, dado que o indivíduo em questão, muito distraído, já tinha largado o tubo e seguia à procura de um banco livre sem reparar que "aquela coluna" não estava fixa e era mais curta que as outras.
Ainda pensei em mudar de lugar, mas optei por me divertir com a situação, segurando o tubo o mais firme possível com as duas mãos. Os passageiros que estavam à minha frente, e que se aperceberam rapidamente da cena, "fizeram a festa" discretamente, de cada vez que um distraído se agarrava ao tubo. Entretanto, eu fazia um esforço tremendo para parecer "inocente". Por incrível que pareça, a maior parte dos passageiros nem deu por nada. Os outros apressavam-se a pedir desculpas pela confusão, e eu respondia "tudo bem, não se preocupe" ...
Aquele telescópio ainda não estava feito e já me dava "bons momentos".
Alcaria Rego (alcaria.rego@mail.telepac.pt)

2. Um intruso no telescópio
Uma noite, no início do Outono, fui fazer uma observação com um telescópio de Newton 150/2000, em campo aberto, algures no campo. O tempo estava excepcional, a temperatura fria mas suportável. No céu viam-se tantas estrelas que já não consegui reconhecer as constelações. Excelente, pensei eu, e comecei a apontar para a Lyra. Inseri uma ocular (aprox. 50 x), para sondar o campo, olhei e...não vi nada. Avancei um pouco. Afinal sempre podia ter apanhado uma zona "sem" estrelas. Nada.
Tirei a ocular e inspeccionei-a. Estava tudo bem. Olhei pelo tubo do telescópio abaixo e ..tudo bem. Meti a ocular outra vez... nada. Meti outra...nada. Olhei pelo tubo do focador e nada...
Afinal, percebi que havia algo escuro que tapou todo o espelho secundário. Olhei com atenção mas não vi nada. Soprei pelo tubo do focador e, de repente, saiu uma enorme borboleta nocturna (ou um daqueles insectos voadores nocturnos) pelo topo do tubo. Depois tudo voltou a funcionar normalmente.
Grom Matthies (Sintra)
grom@ip.pt

3. Guardas desconfiados e persistentes
Esta história ocorreu há cerca de dez anos. Eu e um amigo fomos para a zona da Fonte da Telha, num sábado, ao cair do dia, com a intenção de procurar um céu escuro para fazer fotografia de constelações. Levámos uma vulgar máquina fotográfica reflex de 35 mm, tripé e binóculos, além de muita alegria e entusiasmo.
O local, que neste momento não sei especificar, situava-se numa zona perto das instalações militares ali existentes. Havia um morro e no cimo um posto de vigia de incêndios. Portanto era um local alto e com boa visibilidade. Como já tínhamos tido boas experiências com postos de vigia de incêndio, aquele local parecia ser o mais indicado, inclusive em termos da nossa segurança.
O nosso automóvel ficou estacionado na berma da estrada, com muito pouco movimento ... até aquele momento. Enquanto fazíamos horas, aguardando o crepúsculo, notámos que havia muito movimento de viaturas militares, mas como era a zona delas também não estranhámos.
Quando já estava a ficar escuro, iniciámos a subida do morro por estrada de terra batida. A dada altura vimos dois potentes faróis no cimo do morro, pertencentes a um jeep que, a toda a velocidade, começou a descer a corta-mato. Aí ficámos expectantes, mas ao mesmo tempo descansados, pois vimos que era uma viatura florestal. Decidimos ir ao seu encontro. O jeep parou a uns 20 metros de nós e ouviu-se uma voz: "...atenção que eu estou armado ... quem são e o que querem ?" Na nossa ingenuidade lá dissemos que queríamos fotografar as estrelas, etc., mas o guarda não nos deixou aproximar mais e, sempre com os faróis apontados, obrigou a que colocássemos no chão o que tínhamos nas mãos (não fosse o tripé disparar). Após muita conversa, o guarda aproximou-se, verificou as nossas "armas" e viu as nossas identificações. Embora desconfiado, falou para o rádio e disse mais ou menos isto: "... parece que não são quem pensámos....".
Lá continuámos a conversa e acabámos por subir o morro até ao posto de vigia. A pedido (ordem) do guarda, lá tirámos a nossa foto às estrelas (só uma !), sempre com os faróis do jeep acesos e a máquina em punho, sem tripé !...
E depois, adeusinho, toca a descer o monte, pegar no carro e rumar para Lisboa ... sempre com o jeep atrás de nós até à Costa da Caparica.
Luís Ribeiro (Azambuja/Ferreira do Zêzere)
lribeiro@ferrazlynce.pt

4. O observador faiscante
Por volta de 1967, tinha eu 17 anos, levantei-me pelas 4 h da manhã para fazer observações com a luneta de 50 mm que tinha construído. Como a observação tinha de ser feita àquela hora incómoda, vesti rapidamente a camisa e, sobre ela, enfiei apressadamente uma camisola de lã. Fiz tudo rápido. Depois, com o automatismo próprio dos gestos que já se fizeram muitas vezes, levei o telescópio e um banco para a varanda e preparei-me para observar.
A rua estava silenciosa e... de repente ouvi uma grande faísca eléctrica, junto ao pescoço, que crepitava e originava um clarão esverdeado, rápido e assustador. Dei um berro (que acordou toda a família), saltei do banco e fugi para dentro de casa.
Mais tarde percebi o "mistério". E não era nenhum fenómeno paranormal: a pressa de me vestir, o deslizar rápido da camisola de lã sobre a camisa e o tempo seco fizeram com que a camisola se electrizasse for fricção. Com o ouvido apurado pelo silêncio da madrugada e os olhos relativamente adaptados, o fenómeno, puramente natural, pareceu ganhar dimensões assustadoras.
Guilherme de Almeida (Lisboa)
g.almeida@netc.pt

5. Pôr o telescópio a render
Já vi um indivíduo montar um telescópio no Rossio, a apontar para a Lua, e cobrar 200$ a quem quisesse olhar por ele. O tempo de observação era o de permanência da Lua na ocular. É claro que o telescópio não tinha motor...
Ana Carla Campos
(ana_carla_campos@hotmail.com)

6. Um "encontro imediato"
muito original
Uma noite resolvi ir observar para a Atalaia (Malhada das Meias). Já lá tinha ido umas 20 vezes, num total de aproximadamente 100 horas de observação, das quais estive sozinho 20 a 25 horas. Por isso pensava que já conhecia bem o sítio e estava à vontade.
Quando cheguei, já lá estava um casal à espera da noite, para começar as observações. Estacionei o carro no caminho de areia e fui falar com eles. Quando vinha buscar equipamento ao carro aconteceu a primeira coisa estranha da noite: levei com um "bicho" nas costas e senti garras ou dentes a prenderem-se na roupa. Esperei um segundo e, como o animal não saiu, agarrei-o. Era um morcego!
Pela meia-noite e pouco, o casal foi-se embora e fiquei sozinho (pensava eu). Enquanto observava notei alguns barulhos fora do normal. Olhei em volta e apercebi-me da presença de um grande vulto. Apontei a lanterna e vi então que era um boi (na altura eu não sabia a diferença entre um boi e um touro, e por isso é que esta é a "história do touro"). O bicho era mesmo grande e eu estava junto ao carro, a tentar observar M6 e M7 a olho nu. Por isso, como já não precisava de ter o telescópio e o resto da tralha montada, resolvi arrumar tudo no carro. Quando me dirigi ao telescópio (colocado à frente do carro), o boi começou a correr em direcção a mim, e eu, também a correr, peguei nas coisas (menos na montagem e no tubo) e mandei-as para dentro do carro, onde me abriguei. O boi, quando chegou junto a mim, parou e voltou para trás.
Já dentro do carro, vi que o animal estava a ameaçar carregar outra vez, mas o problema é que eu ainda tinha o telescópio para arrumar. Por isso coloquei o carro ao lado do telescópio e, pela janela, desapertei as braçadeiras do tubo, para o desmontar. Quando fiz isso, o boi voltou a correr em direcção ao carro. Puxei o tubo para dentro, agarrei a montagem, levantei-a no ar e arranquei para sair dali.
Como o boi não me seguiu até à estrada, parei umas centenas de metros à frente para arrumar a montagem. Resultado: esperava uma bela noite de observações e acabei com um encontro com um boi. Isto num sitio que já era familiar.
Nuno Lourenco (l40587@yahoo.com)

7. Uma questão de "experiência"…
Esta história é verdadeira, garanto, e não um desses episódios engraçados mas duvidosos que alguém nos conta como tendo acontecido a alguém seu conhecido. A "experiência" passou-se com alguém que conheço bem: passou-se comigo.
Tudo aconteceu numa noite das Perseidas, há alguns anos atrás, sob um magnífico céu alentejano. Lembro-me que foi uma das raras vezes que levei o meu Meade LX200 a passear, não para ver os meteoros mas sim para animar um pouco o ambiente da assembleia diversificada que se reuniu no local, com e sem "experiência" de observação, e com alguns flashes fotográficos à mistura. Há que admitir que pode ser difícil explicar a alguém, sem a devida "experiência", que para observar meteoros o melhor é reunir o máximo de conforto à nossa volta e simplesmente observar, à vista desarmada, é claro.
Como na altura eu já tinha a "deformação" amadora de astrofotógrafo, e me considerava possuidor da necessária "experiência", logo que possível deixei o LX200 repousar e montei na vizinhança o arsenal minimalista, mas essencial, para realizar fotografias de meteoros. A saber, consistia numa câmara fotográfica reflex convencional, equipada com uma vulgar objectiva de 50mm, contendo uma película sensível, a preto e branco, e um banal disparador flexível, tudo fixado num comum tripé fotográfico. Ao lado estava uma cadeira articulada e a minha pessoa, na cadeira obviamente. Com toda a minha "experiência" de observador citadino, lá fui obtendo imagem após imagem, até quase gastar o rolo que tinha levado.
Completamente envolvido pelo espectáculo do céu, fui subitamente chamado à realidade pela memória de uma das pragas do astrofotógrafo da qual, sim, tinha bastante "experiência". Em noites como aquelas era ponto assente que ocorreria condensação na lente frontal da objectiva. E para resolver tal situação, a "experiência" diz que se deve guardar um pouco a câmara num local mais quente, por exemplo num bolso, ou simplesmente tapar a objectiva e aquecê-la com as mãos. Temendo o pior, e usando a minha "experiência" de trabalhar na escuridão das câmaras-escuras, lá fui ver o que se tinha passado. Com dita "experiência", e apenas pelo tacto, fiquei logo a saber que não tinha havido condensação. No entanto, a minha "experiência" também me disse de imediato que não valeria a pena revelar a película. É que, com toda a minha "experiência", tinha-me esquecido de retirar a tampa da objectiva.
Passado mais algum tempo, guardei o LX200 na mala de transporte, para regressar a casa. Estava cansado, mas mesmo com sono confirmei que era um amador "experiente". O telescópio estava completamente molhado.
Ainda hoje me recordo da "experiência" visual dos meteoros. Espero sinceramente que, numa situação semelhante, o leitor se recorde da minha inexperiência…
AntónioCidadão (Oeiras)
a.cidadao@mail.telepac.pt